"...Depois do sucesso das Noites de Bossa, das primeiras incursões na TV com o pessoal da Bossa Paulista e, na seqüência, juntando cantores e conjuntos de São Paulo e do Rio no memorável “Primavera Eduardo é Festival de Bossa Nova”, patrocinado pelas lojas de sapatos Eduardo, percebi que aquele novo elenco já estava preparado para vôos mais altos.
A música brasileira da época era dominada pelos bolerões de Anísio Silva, Altemar Dutra, sendo Nélson Gonçalves o representante do samba-canção. Começava a ser marcante a receptividade que tinham João Gilberto e a turma da bossa nova, com Vinícius e Baden lotando teatros e bares, emocionando uma nova geração de ouvintes. Estava na hora de uma incursão mais ousada, em que a televisão iria representar um papel fundamental.
As tentativas de Manoel Carlos, hoje autor de novelas de grande sucesso, de colocar um elenco de melhor qualidade no programa “Brasil 60” da TV Excelsior, apresentado por Bibi Ferreira nas noites de domingo, do qual Maneco era o produtor, havia me impressionado pela entusiástica resposta de um público classe A. Os Cariocas, Carlinhos Lyra, Dorival Caymmi, Nara Leão, Baden Powell, Elizete Cardoso, Tamba Trio, Sérgio Mendes e tantos novos artistas eram apresentados regularmente no “Brasil 60”. Um sopro de bom gosto e talento na nossa desde então pouco ousada programação.
Nessa mesma época, o mercado do disco era invadido anualmente pelos sucessos lançados no Festival de San Remo, em geral uma baboseira melosa, quase sempre com uma mesma proposta musical, que, com as honrosas exceções de um raro Sérgio Endrigo, ficava testando por meses e meses a nossa paciência. Achei que era o momento de criar um festival no Brasil. Pedi o regulamento de San Remo ao Enrique Lebendeguer, dono da editora musical Fermata, e o adaptei às nossas condições. O Festival de San Remo era, e ainda é totalmente controlado pelas editoras e gravadoras, sendo que a participação de qualquer música ou artista já vem com um vínculo determinado. Impossível para qualquer compositor independente penetrar naquele universo.
No Brasil, as gravadoras eram em geral ligadas às suas matrizes internacionais, que por sua vez direcionavam a política e a filosofia do que deveria ser gravado e tocado nas rádios. Na minha avaliação, eu não conseguiria fazer um trabalho isento se dependesse da indústria do disco, embora soubesse que, no caso de sucesso do festival, ela seria sua maior beneficiada, e afinal esse sucesso, mais para frente, dependeria do interesse dessa mesma indústria pelos artistas e músicas que eu iria lançar.
Resolvi que, para a minha independência e lisura do festival, não permitiria a participação de qualquer editora ou gravadora. Para que isso não parecesse demagógico, jamais admiti qualquer vínculo com alguma delas, a não ser para facilitar sua aproximação quando o artista que participava do festival manifestava ser do seu interesse. Minha estratégia era colocar no mercado uma porção de músicas, cantores, cantoras e conjuntos musicais, e as gravadoras que se servissem, de acordo com a sua agilidade e competência.
A Philips foi que primeiro e melhor soube capitalizar os sucessos dos festivais. André Midani, que já havia tido a importância de convencer a gravadora Odeon a lançar Chega de Saudade, o primeiro LP de João Gilberto, percebendo ser um ótimo caminho para a formação de seu elenco e o potencial promocional que aquele evento oferecia, escalou um jovem produtor paulista, Manoel Barembeim, para produzir os discos dos festivais.
A preparação do festival da Excelsior transcorria cheia de tensões. Ainda não haviamos conseguido patrocínio. As músicas inscritas eram ouvidas com atenção por um júri que não permitia interferências. Na casa do compositor Caetano Zama se revezava o maestro Damiano Cozzella, o poeta concretista Augustô de Carpos, o professor de semiótica e também concretista Décio Pignatri e Amilton Godoy, do Zimbo Trio, que tinha por missão executar as partituras ao piano.
Naquele ano ainda não eram aceitas inscrições com as músicas gravadas em fita. Eu não dava palpites na escolha. Uma verdadeira indústria da partitura foi acionada e pela caligrafia sabíamos a origem. A exigência da partitura serviu para limitar o número de inscrições, mas ainda assim era um trabalho que necessitava de toda a concentração dos jurados. Escolhi o Guarujá, a então cidade “chique” do litoral paulista para sede do primeiro festival. Imaginava que, durante a sua realização, a convivência dos concorrentes com a imprensa e a vida por alguns dias em uma localidade pequena, onde o assunto predominante fatalmente seria a música popular, serviriam de motivo para várias matérias nos jornais e revistas de todo o país e dariam ao festival uma dimensão que a distância e as dificuldades de acesso ao Guarujá somente iriam mitificar. Como acontecia com San Remo, ou mesmo Cannes, com seu festival de cinema.
Depois de muitos meses de angústia, finalmente um patrocinador: a Rhodia. Naqueles anos, na FENIT, a grande feira de produtos têxteis, as entradas para os shows apresentados no estande da Rodhia eram motivo de verdadeiras batalhas. Seu diretor de propaganda, Lívio Rangan, a cada ano preparava uma superprodução. Na seqüência, o espetáculo, que na verdade nada mais era do que um desfile de modas, percorria as principais cidades do Brasil, partindo em seguida para o exterior, cujas fotos e documentários com as top models da época serviriam para rechear a propaganda da empresa nas revistas brasileiras, além dos comerciais para a TV.
Lívio geralmente completava o elenco com o que era “moda” na música brasileira. Além de publicitário, era excelente produtor e exigente diretor, e podia sempre contar com somas vultosas para contratar os artistas que quisesse para promover seus produtos. Porém, seu gosto na produção dos trajes de seus espetáculos era discutível. Causavam-me até um certo mal-estar. Lívio viria a ser a minha salvação e o meu pesadelo.
Assumiu o patrocínio do festival com a condição de que as apresentações, além do Guarujá, fossem realizadas em São Paulo, Petrópolis e Rio, ocasiões em que aproveitaria para apresentar ao público local o “Show da Rhodia”, preparado para a próxima FENIT, que, exigiu, deveria anteceder as transmissões das músicas pela TV Excelsior. Embora contrariasse a minha idéia original e fora algumas previsíveis pequenas trombadas entre as equipes de produção, achei que sua exigência não iria atrapalhar, a não ser pelo cenário, concebido pelo Cyro Del Nero, para um desfile de modas, e não para um festival de música popular.
Ainda na preparação do festival, o primeiro problema surgiu na divulgação dos compositores classificados. Era evidente e inevitável que um grande número de medalhões tivesse ficado de fora. No Rio de Janeiro, contratado para fazer a divulgação do festival, trabalhava um velho jornalista, Nestor de Holanda. Foi justamente ele o porta-voz dos “desclassificados”. Lívio, preocupado com possíveis repercussões negativas, e diante de várias ameaças de jornalistas do Rio, fez veemente apelo à direção da Excelsior para que reconsiderássemos alguns casos. A pressão foi enorme. Exposto o problema aos jurados, algumas músicas foram ouvidas novamente e, com muita boa vontade, duas ou três, classificadas.
Mas o rolo compressor ainda estava por vir. A primeira eliminatória, com 12 músicas, seria no antigo cassino do Guarujá. A prefeitura, responsável pela cessão do local para a apresentação, distribuiu convites à vontade. A TV Excelsior colocou os seus à venda e a Rhodia foi generosa na distribuição da sua cota, e — surpresa — quase todos os convidados apareceram. Para fazer economia, elenco, orquestra e maestro chegaram para o ensaio geral no dia da apresentação. A equipe técnica já havia feito a sua parte. A cenografia, concebida para o desfile de modas, servia muito pouco para a televisão.
Depois de um tumultuado ensaio, em que os desfiles e o show da Rhodia que antecederiam festival tiveram prioridade, conseguimos passar as músicas. Em seguida reuni todo o elenco no Delfin Hotel para as últimas recomendações sobre maquiagem e guarda-roupa. A apresentação estava a cargo de Bibi Ferreira e Kalil Filho. Os jurados começavam a chegar. A transmissão seria ao vivo, ou seja, nada de atrasos. Hora de ir para o cassino. Quando fui me aproximando, pude ver que uma multidão circundava o antigo prédio estilo art deco. O maestro Sílvio Mazzuca, diretor musical do festival, veio ao meu encontro para meu espanto, confidenciou: “Não vai dar”. “Como não vai dar?”, perguntei. “O cassino já está completamente lotado e a polícia não deixa entrar mais ninguém.”
Pelas calçadas, no meio do público que tentava entrar, músicos, júri, cantores, jornalistas e convidados, ou seja, o festival estava do lado de fora. Tentamos nos aproximar da porta principal. Ninguém conseguia chegar. Aos berros, por uma janela lateral, falei com o administrador do Cassino. “Não posso fazer nada”, disse ele. “O engenheiro garante que a segurança do prédio já está comprometida e ele poderá desabar a qualquer momento.” Faltava pouco mais de uma hora para o início das transmissões. Sentei na calçada em frente ao cassino com os scripts. Ao lado, Bentinho, meu assistente, trazia todas as partituras em uma enorme pasta. Só nos restava ficar esperando o prédio cair.
Depois de alguns minutos e sem saber o que fazer, fui chamado às pressas: “Estamos conseguindo entrar por uma porta do outro lado do cassino”. Lá, a confusão também era enorme. Terminado o desfile, as modelos saíam, enquanto cantores, músicos, autoridades e jurados se espremiam na tentativa de entrar por uma minúscula porta guardada por alguns policiais comandados pelo diretor de atendimento da conta da Rhodia na Standard Propaganda, um baixinho que gritava histérico: “Ninguém mais entra! Ninguém mais entra!”. Alguém no seu ouvido indicava aqueles que faziam parte do espetáculo e cuja entrada deveria ser permitida.
Iam entrando um a um, e a porta era fechada para que verificassem quem era de fato importante o bastante para passar. As credenciais já não tinham nenhum valor. Quando tentava furar o bloqueio, alguém com um sotaque carregado me segredou: “Eu sou o presidente da Rhodia e gostaria que o senhor me ajudasse a entrar”. “Fique ao meu lado”, respondi, e coloquei-o entre mim e o Bentinho para protegê-lo. E fomos tentando nos aproximar da porta.
“Ele pode entrar. É o diretor”, salvou-me o cara que cochichava ao policial. O Bentinho também pôde passar. Quando o senhor presidente tentou se aproximar, o baixinho, cada vez mais intransigente e histérico, berrou: “Não pode entrar! Não pode!”, o que fez com que um dos policiais agarrasse o pobre senhor para enxotá-lo dali. “Este é o presidente da Rhodia”, cochichei ao baixinho. Ele parou, mudo, pálido. Tinha acabado de berrar com o seu todo-poderoso cliente sem se dar conta, e na seqüência, ao perceber a bobagem cometida e com a mesma histeria, correu atrás do policial que levava o obediente senhor pelo braço: “Ele tem que entrar! Ele tem que entrar. Pelo amor de Deus volte. Deixem esse homem passar, é o cliente. e o cliente”, suplicava quase chorando ao espantado policial, que não devia saber bem o significado e a importância da palavra cliente para um publicitário.
No salão o clima era de total confusão. Gente sentada pelo cenário. Alguns artistas conseguiram entrar pelas janelas e estavam espalhados no meio da multidão, que, inquieta, ensaiava as primeiras palmas de impaciência. Aos poucos todos foram chegando e com jeitinho, organizamos a transmissão, que ficou pronta trinta segundos antes da hora programada para entrar no ar. “Ao vivo” e.. em preto e branco.
As apresentações de São Paulo e Petrópolis, onde escolhemos - Hotel Quitandinha, transcorreram sem incidentes. A próxima etapa seria a final no Rio de Janeiro. Ao longo das eliminatórias, Livio foi tecendo sua teia ao redor do júri. Almoços aqui, presentinhos ali, e já contava com mais da metade dos jurados. Seu interesse estava em tornar vencedora a música que estava em seu show, e uma vitória no festival, sem dúvida, iria acrescentar mais um poderoso elemento promocional. O então diretor comercial da TV Excelsior, Clóvis Azzar, apoiava qualquer ação do representante do seu faturamento.
Elis não falava comigo. Estava ofendida pelo rompimento do nosso “noivado” e desconfiada que eu queria prejudicar uma das músicas que ela defendia, Por um amor maior, de Francis Hime e Ruy Guerra, sua preferida. A força de Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, era gritante, e eu tinha de tentar neutralizar o “lobby” montado pelo Lívio Rangan.
Não podendo contar com Elis, tentei uma jogada arriscada. Depois de passar horas esperando uma ligação telefônica para São Paulo, consegui localizar Walter Silva, que na época apresentava um programa de rádio de grande audiência, “O Picape do Pica-Pau”, e relatei o que estava acontecendo. Walter não economizou palavras e desancou o festival em seu programa, denunciando inclusive as pressões do Lívio sobre os compositores da velha guarda, classificadas como uma manobra no mínimo pouco ética.
Minutos antes do início da finalíssima, no teatro da TV Excelsior do Rio de Janeiro, o antigo Cine Astória, quando os jurados já estavam nos seus lugares e depois de me certificar da repercussão das denúncias do Walter Silva, me aproximei do Lívio e contei o que estava acontecendo em São Paulo.
Preocupado em ser envolvido publicamente em uma trama que fatalmente resultaria em escândalo, juntou o seu grupo de jurados e os liberou para que votassem de acordo com a sua preferência. Resultado: Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, primeiro lugar; Elis Regina, melhor intérprete..."
Fonte: Prepare seu Coração (A História dos Grandes Festivais) – Solano Ribeiro – Geração Editorial, 2002
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